terça-feira, 30 de junho de 2020

DO QUE GOSTO 17


Foto de S. (Volto já)

Um Quiosque na Praia


Um chapéu amarelo tapando-lhe o cocuruto, a condizer com o resto da toilette e com o lugar ao sol porque, mesmo tratando-se de um quiosque, convém cobrir a cabeça. Por causa do calor outonal encoberto, resquícios do Verão, dos dias em que o sol escaldava os corpos despidos.
Um certo ar oriental, também, naquela aba revirada para cima, à semelhança das bailarinas tailandesas, braços e dedos esguios graciosamente levantados dançando ao som de músicas longínquas para lá da linha do horizonte. Ou minarete de mesquita, não se dê o caso de algum veraneante precisar de ser discretamente lembrado das suas obrigações espirituais, que em indumentárias balneares se esquecem por vezes as religiões e os seus preceitos.
Ali em cima está escrito: Volto já. Não sei se volta, quem quer que tenha deixado o aviso. Falsas promessas, possivelmente. O Verão fechou as portas e com ele levou a rapariga que aqui trabalhou durante as férias. Talvez de costas para o mar, ou talvez não. Quem sabe abria todas as janelas em redor desta casa emprestada e poisava o seu olhar no azul imenso. Para lá das revistas e dos jornais que pendurava do lado de fora do quiosque, em exposição. Longe das bóias e das braçadeiras balançando leves; indiferente aos pentes e aos ganchos de cabelo coloridos; alheia aos baldes com pás e formas dentro, figuras plastificadas de caranguejos, patos, estrelas-do-mar, peixes, conchas, barcos… Tudo ali dependurado: tentação de criança, berros de criança, sorrisos e tristezas de meninos, sonhos de meninos, birras também. Ralhos de adulto, equívocos de adulto, benevolências de adulto, recordações em fato de banho, baldes vermelhos repletos de infâncias antigas à espera da água colhida no mar. Castelos, bolos e sabores de areia de outros tempos dissolvidos num ápice; novos castelos e novos sabores agora, outros bolos moldados pelas mãos dos filhos e dos netos, e dos sobrinhos. Buracos cavados na areia molhada pela fantasia de outros filhos, de outros netos, de outros sobrinhos, os dos amigos no toldo ao lado. Que importam as mãos, que importam os baldes? Repetem-se os gestos, ainda que a areia escorregue entre os dedos.
Espero que não volte tão cedo, quem quer que tenha deixado o aviso lá em cima. Gosto do quiosque no Outono da praia, despido das cores estivais, recolhido em meditação neste vazio de gente.
M
 
(2005)

1 comentário:

Justine disse...

A beleza de um texto sobre emoções de alguém, de muitos "alguéns", até de objectos...
(quiosque que eu nunca vi aberto, mas que não me canso de fotografar)