Foto de S. (Águas passadas)
O Largo da Fonte
Não é bem igual, mas
lembra-me a fonte de uma aldeia na zona do Buçaco onde eu, em
criança, passava férias de Verão.
Nessa
aldeia só existia uma rua principal que desembocava num largo com um
pelourinho e uma fonte muito antiga que se avistava da minha casa. Eu
tinha cerca de nove anos e uma bilha pequena que alguém me oferecera
juntamente com uma rodilha, tudo na proporção do meu tamanho. Há
quem chame também sogra
a essa almofada que se coloca entre a cabeça e o que quer que seja
que se queira transportar em cima do pensamento, mas como a mim,
nessa altura, ninguém me tinha presenteado com nenhuma sogra,
prefiro chamar-lhe rodilha.
Pois sendo eu uma
menina com a mania de imitar os hábitos de quem vivia à minha
volta, deliciava-me a ir buscar água à tal fonte onde as mulheres
da aldeia se deslocavam várias vezes ao dia. Não havia água
canalizada em parte alguma e por isso andávamos, eu e a minha amiga
Celeste, constantemente para trás e para diante a encher as bilhas.
Para mim, estas caminhadas constituíam um divertimento, e para a
minha amiga uma obrigação de adulto que ela carregava no alto da
cabeça. Apesar do peso imposto sobre o seu corpo, − fazíamos
apenas uma diferença de idades de um ou dois anos −, a tarefa de
ajudar a sua mãe, quando eu a acompanhava, era igualmente sentida
como uma brincadeira. Penso que ela achava uma certa graça à
dimensão de boneca da minha bilha e ao facto de alguém que não
pertencia à aldeia fazer esse trabalho.
Era também junto do
pelourinho encostado à bica que se juntava a minha família para uma
fotografia comemorativa dos meus anos. As férias de outros tempos
prolongavam-se por Setembro e, como o meu aniversário calha em fins
deste mês, as minhas tias e primo apareciam por lá para os
festejos, chegados de Lisboa, depois de horas e horas por uma estrada
nacional cheia de curvas e distâncias. Uma reunião familiar que
constituía uma ocasião especial para mim, um acrescento de afectos
às minhas férias passadas apenas entre os meus pais e o meu irmão.
Mas
esse largo tinha outras funções. Para além de sala de espera onde
as mulheres se sentavam à conversa na beira da pedra da fonte
atentas à água que corria devagar, funcionava, em dias de festa,
como salão de baile ao ar livre. Depois da missa cantada (e
desafinada, por vezes) seguia-se a procissão que percorria a rua de
alto a baixo, ao longo de colchas brilhantes debruçadas sobre os
peitoris das janelas e das varandas, recolhendo depois os andores com
os santos à igreja. Era então que a banda se instalava no largo e
tocava as músicas de sempre, entre o acanhamento dos rapazes e das
raparigas que se amontoavam em grupos, olhares e risos separados, e
atavios costurados para a ocasião.
Mas
as modinhas tinham de certo uma função terapêutica no desfazer da
timidez da juventude: passado algum tempo, ficava camuflada pela
poeira levantada no terreiro por pés dançando sonhos e namoricos.
Esse largo tinha ainda
um outro uso: era nele que se esbatiam as tristezas masculinas saídas
dos dias de funerais, chegando mesmo a alegrar-se quem se acercasse
da taberna próxima. E a alegria, por vezes, crescia de tal maneira
que transbordava em violência para fora dos corações. E tudo por
causa dos extremos dos sentimentos embebidos em álcool e das
estremas das terras que facilmente mudavam de lugar com o auxílio
secreto de uma enxada. Lembro-me claramente de uma noite (a tal mágoa
disfarçada de alegria continuava habitualmente para lá do sol
posto) em que vi um grupo de três ou quatro homens emaranhados uns
nos outros, e à pancada, deslocando-se em volta do largo, como se
dançassem uma valsa. E, como nesses tempos não existia luz
eléctrica, escoltava-os uma alma caridosa (ou curiosa?), correndo
com eles de um lado para o outro, alumiando-lhes o passo vacilante
com uma candeia, não fossem os beligerantes errar o alvo dos seus
murros pesados embrulhados em insultos entaramelados de vinho.
Foi assim há alguns
anos atrás: águas passadas no largo da fonte de uma aldeia.
M
(2005)
1 comentário:
Preciosas memórias! São como crónicas ilustradas (a preceito, ambos) dos longos dias da infância. E tudo isto surge com (apenas)uma torneira velha...
Que mais dizer?
B
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