segunda-feira, 20 de julho de 2020

DO QUE GOSTO 40


Foto de S. (Águas passadas)

O Largo da Fonte



Não é bem igual, mas lembra-me a fonte de uma aldeia na zona do Buçaco onde eu, em criança, passava férias de Verão.

Nessa aldeia só existia uma rua principal que desembocava num largo com um pelourinho e uma fonte muito antiga que se avistava da minha casa. Eu tinha cerca de nove anos e uma bilha pequena que alguém me oferecera juntamente com uma rodilha, tudo na proporção do meu tamanho. Há quem chame também sogra a essa almofada que se coloca entre a cabeça e o que quer que seja que se queira transportar em cima do pensamento, mas como a mim, nessa altura, ninguém me tinha presenteado com nenhuma sogra, prefiro chamar-lhe rodilha.

Pois sendo eu uma menina com a mania de imitar os hábitos de quem vivia à minha volta, deliciava-me a ir buscar água à tal fonte onde as mulheres da aldeia se deslocavam várias vezes ao dia. Não havia água canalizada em parte alguma e por isso andávamos, eu e a minha amiga Celeste, constantemente para trás e para diante a encher as bilhas. Para mim, estas caminhadas constituíam um divertimento, e para a minha amiga uma obrigação de adulto que ela carregava no alto da cabeça. Apesar do peso imposto sobre o seu corpo, − fazíamos apenas uma diferença de idades de um ou dois anos −, a tarefa de ajudar a sua mãe, quando eu a acompanhava, era igualmente sentida como uma brincadeira. Penso que ela achava uma certa graça à dimensão de boneca da minha bilha e ao facto de alguém que não pertencia à aldeia fazer esse trabalho.

Era também junto do pelourinho encostado à bica que se juntava a minha família para uma fotografia comemorativa dos meus anos. As férias de outros tempos prolongavam-se por Setembro e, como o meu aniversário calha em fins deste mês, as minhas tias e primo apareciam por lá para os festejos, chegados de Lisboa, depois de horas e horas por uma estrada nacional cheia de curvas e distâncias. Uma reunião familiar que constituía uma ocasião especial para mim, um acrescento de afectos às minhas férias passadas apenas entre os meus pais e o meu irmão.

Mas esse largo tinha outras funções. Para além de sala de espera onde as mulheres se sentavam à conversa na beira da pedra da fonte atentas à água que corria devagar, funcionava, em dias de festa, como salão de baile ao ar livre. Depois da missa cantada (e desafinada, por vezes) seguia-se a procissão que percorria a rua de alto a baixo, ao longo de colchas brilhantes debruçadas sobre os peitoris das janelas e das varandas, recolhendo depois os andores com os santos à igreja. Era então que a banda se instalava no largo e tocava as músicas de sempre, entre o acanhamento dos rapazes e das raparigas que se amontoavam em grupos, olhares e risos separados, e atavios costurados para a ocasião. Mas as modinhas tinham de certo uma função terapêutica no desfazer da timidez da juventude: passado algum tempo, ficava camuflada pela poeira levantada no terreiro por pés dançando sonhos e namoricos.

Esse largo tinha ainda um outro uso: era nele que se esbatiam as tristezas masculinas saídas dos dias de funerais, chegando mesmo a alegrar-se quem se acercasse da taberna próxima. E a alegria, por vezes, crescia de tal maneira que transbordava em violência para fora dos corações. E tudo por causa dos extremos dos sentimentos embebidos em álcool e das estremas das terras que facilmente mudavam de lugar com o auxílio secreto de uma enxada. Lembro-me claramente de uma noite (a tal mágoa disfarçada de alegria continuava habitualmente para lá do sol posto) em que vi um grupo de três ou quatro homens emaranhados uns nos outros, e à pancada, deslocando-se em volta do largo, como se dançassem uma valsa. E, como nesses tempos não existia luz eléctrica, escoltava-os uma alma caridosa (ou curiosa?), correndo com eles de um lado para o outro, alumiando-lhes o passo vacilante com uma candeia, não fossem os beligerantes errar o alvo dos seus murros pesados embrulhados em insultos entaramelados de vinho.

Foi assim há alguns anos atrás: águas passadas no largo da fonte de uma aldeia.

M



(2005)

1 comentário:

Anónimo disse...

Preciosas memórias! São como crónicas ilustradas (a preceito, ambos) dos longos dias da infância. E tudo isto surge com (apenas)uma torneira velha...
Que mais dizer?
B